A Lei de Proteção da Vegetação Nativa (LPVN), que substituiu o Código Florestal de 1965, encontra‐se ainda em fase de regulamentação em nível federal e estadual e a constitucionalidade de algumas alterações ainda está sendo questionada. Visando subsidiar a tomada de decisão por parte de juristas e agentes públicos, bem como informar o público geral, apresentamos uma análise equilibrada das consequências positivas e negativas dessa lei à luz do conhecimento científico. Avanços importantes foram observados nos sistemas de controle e incentivo, que propuseram novos mecanismos e políticas públicas para subsidiar a implantação dessa lei. Os principais retrocessos ambientais foram: i) a remoção da proteção de áreas ambientalmente sensíveis, ii) a concessão de anistia de multas aplicadas por violações à lei anterior e iii) a permissão de manter atividades agropecuárias e infraestrutura em áreas protegidas, sem necessidade de recuperação total da vegetação nativa. A fragilização da LPVN pode comprometer a proteção do solo e dos mananciais, a conservação da biodiversidade e a produção agropecuária, sem trazer benefícios evidentes para o país. Nesse contexto, recomendamos: i) que o conhecimento científico e a maior participação da sociedade embasem a tomada de decisão pelo Poder Judiciário e a correção de possíveis distorções na LPVN por estados e municípios, por meio de regulamentações apropriadas; ii) que se fortaleçam os órgãos de assistência técnica rural para fomentar a implantação da lei; iii) que se desenvolvam mecanismos de estímulo para desenvolver a cadeia de negócios da recuperação da vegetação nativa; iv) que a compensação da Reserva Legal se atente a critérios ambientais para seu planejamento; e que v) o cumprimento das demandas da lei seja aferido também com base na qualidade da vegetação que é recuperada.
The Native Vegetation Protection Law (NVPL) of Brazil, which replaced the Forest Code from 1965, is still undergoing regulation at federal and state levels, and the constitutionality of some clauses are still in question. In order to support legal rulings, decisions by public officers, and to inform other stakeholders, we present a balanced assessment of the positive and negative consequences of NVPL in light of current scientific knowledge. Key advances were noted in the systems of controls and incentives, which promoted new mechanisms and policies to support the implementation of this law. The main environmental setbacks were i) the removal of protection of certain environmentally fragile areas, ii) the concession of amnesty of fines incurred for violating the preceding legislation, iii) allowing continuous farming or maintenance of infrastructure in areas protected by law, without full recovery native vegetation. The weakening of NVPL may hamper soil and watershed protection, biodiversity conservation, and even agricultural productivity, without manifest benefits for the country. On that account, we recommend: i) that judiciary rulings and state and county regulations to correct pending issues with the NVPL based on scientific knowledge and with wider citizen participation; ii) the strengthening of agencies for rural technical assistance; iii) the development of incentives to develop the supply chain for native vegetation recovery; iv) the regulation of compensation for Legal Reserves based on clear and robust environmental criteria; and that v) that the assessment of legal compliance has also to be based on the environmental quality of recovered areas.
Há quase quatro anos entraram em vigor no Brasil, depois de 13 anos de debates no Congresso Nacional, as novas normas que regulam a exploração, a conservação e a recuperação da vegetação nativa em todo o território nacional. Essas normas estão definidas na Lei n° 12.651, sancionada, com alguns vetos, em 25 de maio de 2012 pela presidente da República, Dilma Rousseff, e alterada pela Lei n° 12.727, de 17 de outubro de 2012. A lei atual, intitulada oficialmente Lei de Proteção da Vegetação Nativa (LPVN), é popularmente conhecida como Novo Código Florestal. Mas essa é uma denominação inadequada. Não se trata de um código (conjunto de dispositivos legais sobre um determinado campo jurídico, como o Código Penal), nem mesmo se restringe a florestas. Essa lei abrange todo e qualquer ecossistema terrestre nativo, incluindo campos, caatingas e cerrados.
A LPVN determina a proporção de uma propriedade rural que pode ser usada para a produção agrossilvipastoril e exclui a área de vegetação nativa que deve ser protegida ou ter uso restrito. Também define em quais situações o proprietário, ou quem tem a posse do imóvel rural, deve recuperar a vegetação natural em suas terras. O cumprimento efetivo da LPVN é fundamental para a preservação do que resta da flora, da fauna e dos mananciais brasileiros, uma vez que 53% da vegetação nativa remanescente no país se encontram em propriedades rurais particulares, e não dentro de unidades de conservação (Soares‐Filho et al., 2014); essa proporção chega a 90% na Mata Atlântica, o bioma mais degradado do país, no qual se concentra mais de 60% da população brasileira (Ribeiro et al., 2009). A implantação da LPVN também é essencial para recuperar as florestas que foram eliminadas das áreas protegidas da propriedade rural e, assim, garantir os serviços ambientais (fig. 1), como o suprimento de água para a agropecuária e para o consumo humano, além de moderar os efeitos das variações climáticas em cada ecossistema. Tais serviços são indispensáveis tanto para o desenvolvimento agrícola como para o bem‐estar e a segurança das populações que vivem no campo e nas cidades.
Embora a LPVN esteja em vigor desde 2012, a regulamentação de alguns de seus dispositivos em nível estadual e o julgamento da constitucionalidade das alterações da lei no Supremo Tribunal Federal (STF) poderão gerar mudanças significativas que, por um lado, tornariam a lei mais rigorosa com quem suprimiu vegetação nativa além do permitido no passado; por outro, a deixariam mais exigente com respeito a medidas de recuperação de áreas de preservação na propriedade rural. Na seção final deste documento, avaliamos algumas das medidas atualmente em curso que poderão modificar a LPVN e apresentamos propostas que, no nosso entender, poderão redirecionar a legislação ambiental para atingir, com mais eficiência e menos ambiguidade, seus objetivos mais importantes.
Para a opinião pública e mesmo para muitos técnicos e pesquisadores, após a sanção da LPVN em 2012, tornou‐se irrelevante ou inútil prosseguir a discussão dos pontos polêmicos que envolveram a sua elaboração. Nosso entendimento é exatamente o oposto. É preciso retomar a discussão técnica e científica da LPVN, principalmente dos seus pontos polêmicos ou ambivalentes, para embasar a regulamentação estadual, que já se iniciou sem considerar o conhecimento científico, a implantação da lei pelo Governo Federal e as possíveis alterações do Supremo Tribunal Federal (Lima et al., 2014). A comunidade científica nacional deve contribuir para essa discussão e oferecer uma avaliação crítica (Loyola & Bini 2015), tão isenta quanto possível, das consequências positivas e negativas que a aplicação da nova lei pode acarretar para a produção agrossilvipastoril, para a conservação da biodiversidade e para a manutenção de serviços ambientais.
Este é um White Paper escrito por autores convidados pela Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação (Abeco). Um White Paper, ou, em português, Livro Branco, é um documento oficial, normalmente publicado por um governo, uma instituição ou uma organização internacional. Sua finalidade é servir de informe ou guia sobre um dado problema e apresentar orientações de como enfrentá‐lo. Esses documentos auxiliam os leitores a tomar decisões. Este White Paper, em particular, se propõe a fazer, à luz do conhecimento científico e da experiência prática de cientistas que lidam com essas questões há anos, uma análise equilibrada das consequências positivas e negativas que podem decorrer da implantação da nova legislação ambiental.
Antecedentes da Lei de Proteção da Vegetação NativaA regulamentação da exploração, da conservação e da recuperação da vegetação nativa começou em 1934, com o primeiro Código Florestal Brasileiro (Decreto Federal 23.793, de 1934). Esse decreto buscava poupar da expansão desenfreada da agricultura trechos de vegetação nativa localizados em áreas que desempenhassem um papel ambiental importante, como as margens de rios e nascentes (fig. 2). Após mais de 30 anos, a Lei n° 4.471, de 1965, criou uma versão do CF mais efetiva e objetiva, com critérios mais claros para a conservação e o uso racional da vegetação nativa em propriedades rurais. Por exemplo, as dimensões das Áreas de Preservação Permanente (APPs) passaram a variar conforme a largura dos cursos d’água. Além do CF de 1965, três leis, ainda em vigor, complementaram a legislação ambiental brasileira: a Lei n° 6.001, de 1973, conhecida como Estatuto do Índio, que estabeleceu as regras para a conservação de áreas naturais em terras indígenas; a Lei n¿ 9.605, de 1998, comumente chamada “lei de crimes ambientais”, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas para condutas e atividades lesivas ao meio ambiente; e a Lei n° 9.985 de 2000, que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc) e definiu as regras para a preservação da vegetação e da fauna nativas nessas áreas (fig. 2). Apesar da importância ambiental dessas três leis, o aperfeiçoamento da legislação que rege o uso, a conservação e a recuperação de ecossistemas nativos em propriedades rurais é fundamental, uma vez que essas propriedades ocupam cerca de 80% do território brasileiro (Sparovek et al., 2010) e, como já foi destacado, abrigam mais da metade da área de vegetação nativa remanescente no país.
Mesmo antes da sanção da LPVN, a Constituição federal de 1988, que prevalece sobre as leis federais e estaduais, já contemplava em seu artigo 225 a proteção da flora e da fauna brasileiras e a preservação da função ecológica desempenhada por elas (fig. 2). No ano seguinte ao da promulgação da Constituição federal, a Lei n° 7.803, de 1989, fortaleceu o CF de 1965 ao ampliar os limites das APPs. Muito da vegetação original que hoje precisa ser recuperada foi perdida tanto em consequência da supressão legal, antes da existência de leis ambientais ou do fortalecimento de leis existentes, como da ilegal, feita em desacordo com a legislação ambiental por razões diversas, como a falta de um zoneamento ou planejamento agrícola e ambiental que regulasse o avanço da fronteira agrícola, o incremento da área cultivada, o desconhecimento da legislação ou a sensação de impunidade decorrente da fiscalização falha.
A partir da publicação da Lei de Crimes Ambientais (Lei n° 9.605, de 1998), os órgãos de controle e defesa ambiental passaram a intervir de forma mais efetiva e o descumprimento do CF de 1965 passou a originar sanções civis, administrativas e penais, bem como a imposição de medidas reparatórias. Houve seguidas tentativas de regularizar as propriedades rurais, mas a possibilidade de criminalizar os descumpridores do CF de 1965 descontentou os produtores rurais, que, por meio de entidades que os representavam, como a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), exerceram forte influência no Congresso Nacional e desencadearam um movimento político pela formulação de uma lei que substituísse o CF de 1965 (fig. 3).
A partir da Lei de Crimes Ambientais, iniciativas de regularização ambiental de propriedades rurais foram alavancadas pelo mercado de commodities agrícolas – produtos vendidos no mercado mundial e predominantemente exportados pelo Brasil para outros países –, com o objetivo de evitar sanções legais e possibilitar a certificação ambiental para atender a demandas de mercado. Adicionalmente, iniciativas de responsabilidade socioambiental na cadeia do agronegócio, em especial ligadas ao cultivo de soja e à pecuária, levaram os produtores rurais a se engajar em atividades que adequavam o uso e a ocupação do solo às demandas legais e ambientais (Rodrigues et al., 2011; Nepstad et al., 2014). Consequentemente, houve um expressivo aumento da fiscalização das propriedades rurais e da punição ao descumprimento da lei nos anos anteriores à aprovação da LPVN, o que gerou uma pressão sobre proprietários e produtores em desacordo com a lei.
Desde o fim dos anos 1990, parlamentares brasileiros já justificavam a necessidade de reformular o CF de 1965 com base em uma série de argumentos. Segundo eles, era preciso corrigir a insegurança jurídica e as demandas adicionais de recuperação geradas pelas sucessivas alterações nessa lei. Também se deveria facilitar a regularização das propriedades que haviam descumprido a legislação anterior e tornar a legislação ambiental socialmente mais justa, ao amenizar as exigências de conservação nas pequenas propriedades rurais. Além disso, os parlamentares sugeriram reformar todo o CF de 1965 para autorizar a manutenção de certas atividades agropecuárias e a instalação de infraestrutura em áreas legalmente protegidas, mas historicamente usadas, como os cultivos de café, banana e uva em encostas íngremes e topos de morro e as plantações de arroz em várzeas. Assim, seria possível estabelecer um novo ponto de partida, com regras supostamente mais claras e condizentes com a realidade do meio rural brasileiro naquele momento.
Esse movimento de mudança, fortemente articulado pelo agronegócio, ganhou força a partir de 2009 no Congresso Nacional (fig. 3). Apesar de audiências públicas e consultas nominais, houve reduzida participação da sociedade civil e de cientistas cujas pesquisas eram relevantes ao tema (Loyola & Bini 2015). A comunidade acadêmica, por meio de entidades representativas, como a Academia Brasileira de Ciências, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação, formulou propostas e sugestões que foram enviadas ao Legislativo e ao Executivo (Lewinsohn, 2010; Metzger, 2010; Silva et al., 2012). Essas propostas, porém, não foram aproveitadas na versão final da LPVN, promulgada em 2012.
Avanços e retrocessos da Lei de Proteção da Vegetação NativaAs mudanças resultantes da LPVN, que revogou e substituiu o CF de 1965, podem ser essencialmente agrupadas em três conjuntos: a) disposições gerais, que apresentam as regras a serem seguidas obrigatoriamente por todas as propriedades rurais a partir da publicação da lei; b) disposições transitórias, que criam concessões para favorecer a regularização das propriedades que descumpriram o CF de 1965, considerando como data limite dos descumprimentos 22 de julho de 2008 (que é a data da publicação do Decreto n° 6.514, que regulamenta a Lei de Crimes Ambientais e trata das infrações ao meio ambiente e as consequentes sanções); e c) sistemas de controle e incentivo, que resultaram na criação de mecanismos e políticas públicas para subsidiar a implantação da LPVN. Os principais avanços dessa lei foram observados nos novos sistemas de controle e incentivo, ao passo que os retrocessos ambientais constatados pela comunidade científica decorrem principalmente das disposições transitórias e de determinadas disposições gerais. Algumas das questões mais críticas serão destacadas a seguir.
AvançosO maior mérito da LPVN está no estabelecimento de programas inovadores de controle e incentivo ao cumprimento da lei. Antes, a fiscalização do CF de 1965 dependia de denúncias e de ações circunstanciais dos órgãos de controle ambiental. A LPVN, em contrapartida, criou o Cadastro Ambiental Rural, o Programa de Regularização Ambiental, o Projeto de Recuperação de Áreas Degradadas e Alteradas e as Cotas de Reserva Ambiental, com normas estabelecidas pelo Decreto n° 7.830, de 17 de outubro de 2012. Essas quatro ferramentas possibilitam a gestão sistemática e integrada da lei, além de obrigar e monitorar seu cumprimento.
O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um sistema gratuito e autodeclaratório de registro on‐line de propriedades e posses rurais e de sua situação ambiental em relação às demandas da LPVN, com o qual se produz um diagnóstico das regularidades e irregularidades ambientais. As informações obtidas com o CAR permitem que o poder público produza um quadro abrangente de como as propriedades rurais no Brasil se encontram perante a legislação ambiental, subsidia tanto programas de incentivo ao cumprimento da lei como atividades de controle, monitoramento e fiscalização. Medidas como a restrição de licenças ambientais e de crédito agrícola para propriedades não inscritas ou regularizadas no CAR e a ampliação do limite de financiamento para custeio daquelas cadastradas (Resolução n° 4.226, de 2013, do Banco Central) devem servir de estímulo para a adesão maciça ao sistema. Até 29 de fevereiro de 2016, cerca de 2,4 milhões de imóveis rurais, que abrangem 269 milhões de hectares (67,6% do total passível de cadastramento), já havia sido registrado no CAR, de acordo com o Serviço Florestal Brasileiro (http://www.florestal.gov.br/cadastro‐ambiental‐rural/numeros‐do‐cadastro‐ambiental‐rural).
A partir desse diagnóstico dos passivos ambientais, as propriedades ou posses rurais em desacordo com a lei por não terem o mínimo necessário de vegetação nativa em APPs ou por apresentarem déficit de Reserva Legal (RL) (fig. 4) podem optar por aderir ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) e se adequarem à lei, comprometer‐se com medidas de recuperação na propriedade ou compensação fora da propriedade do déficit de vegetação nativa, na extensão estabelecida pela lei. O PRA foi regulamentado pelo Decreto n° 8.235, de 5 de maio de 2014, que instituiu o Programa Mais Ambiente Brasil. A adesão a esse programa proporciona vantagens, como a suspensão de multas e a possibilidade de consolidar (isto é, legalizar) atividades agrosilvipastoris e infraestrutura em APPs. Após a assinatura do termo de compromisso do PRA, os passivos legais da propriedade podem ser resolvidos com instrumentos como o Projeto de Recuperação de Áreas Degradadas e Alteradas (Prada), pelo qual o responsável pela propriedade se compromete a manter e recuperar a vegetação nativa em APP e/ou RL ou a compensar o déficit de RL por meio de instrumentos como os contratos de servidão, a aquisição de áreas ocupadas com vegetação nativa ou a compra de Cotas de Reserva Ambiental (CRA), todos no mesmo Bioma (Zakia & Pinto, 2013). Dessa forma, o proprietário, ou posseiro, estabelece um compromisso formal com o Poder Público para se adequar à lei num prazo máximo de 20 anos. Deverá cumprir esse compromisso gradualmente (10% a cada dois anos). Esse compromisso poderá ser aferido ao longo do tempo por meio da sobreposição de imagens de satélite da cobertura de vegetação nativa e das áreas de recomposição declaradas no CAR. No caso da não adesão ao PRA ou do não cumprimento do PRADA, a propriedade rural será submetida a normas mais rígidas, que incluem a ampliação da área a ser recuperada e a perda do direito de manter atividades agrossilvipastoris em algumas condições anteriormente proibidas pelo CF de 1965.
A LPVN amplia ainda mais a capacidade de controle do Poder Público ao estabelecer, em seu Artigo n° 26, a exigência de que o proprietário ou posseiro obtenha autorização do órgão ambiental para suprimir a vegetação nativa fora de APPs e RLs. Essa exigência, que não existia no CF de 1965, cria a possibilidade de o Poder Público implantar medidas efetivas de ordenamento territorial sobre 97,9 milhões de hectares de ecossistemas florestais e não florestais nativos em todo o Brasil. É necessário, porém, que critérios adequados e baseados em conhecimento científico sejam definidos para a autorização ou não da supressão solicitada (Overbeck et al., 2015). Interpretações distorcidas da LPVN podem comprometer esse avanço. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o Decreto Estadual n° 52.431, de 2015, elaborado sob a pressão de entidades ruralistas, permitiu declarar campos nativos em uso pastoril como “área rural consolidada por supressão de vegetação nativa com atividades pastoris”. Essa classificação compromete a efetiva proteção dos remanescentes de vegetação nativa do bioma Pampa contra a conversão para pastagens de espécies exóticas. Da mesma forma, ao legalizar como fato consumado a conversão desses campos em pastagem, essas áreas foram excluídas das exigências de conservação e manejo de baixo impacto de RL estipuladas na LPVN, contrariou‐se a intenção da lei maior. Essa distorção reforça a importância de as regulamentações estaduais serem sustentadas pela ciência.
A LPVN também se destaca por ter estabelecido a possibilidade de uso de instrumentos econômicos, como o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), para fomentar a conservação e a recuperação da vegetação nativa no país. No entanto, aqui novamente falta uma regulamentação abrangente para orientar o PSA, embora na prática esse instrumento já venha sendo usado em diversos locais do país (Richards et al., 2015). Falta, por exemplo, determinar em políticas públicas regionais quais situações são elegíveis para receber compensações financeiras, em que condições os repasses serão feitos, o órgão responsável por esse mecanismo de transferência, o montante de recursos a alocar para esse fim, as fontes dos recursos e os parâmetros que serão usados para aferir se os serviços ambientais estão sendo prestados.
RetrocessosA LPVN manteve em suas disposições permanentes a maior parte das exigências estabelecidas no CF de 1965 para a conservação de APPs e RLs. Mas algumas das disposições reduziram drasticamente, ou mesmo removeram, a obrigação de proteger determinadas áreas anteriormente protegidas pelo CF de 1965 e que são de fundamental importância ambiental. A redução é evidente em quatro casos exemplares. O primeiro é a exclusão das nascentes intermitentes da categoria das APPs. Mais vulneráveis à degradação porque deixam de aflorar água em algum período do ano, essas áreas não são mais consideradas APPs na LPVN. Da mesma forma, acumulações naturais ou artificiais de água com superfície inferior a 1hectare deixaram de ter seu perímetro protegido como APP, mesmo que essas áreas tenham sido geradas pelo barramento, e a consequente degradação, de uma nascente e sem considerar o papel que esse conjunto de acumulações pode ter nos serviços hídricos regionais. O terceiro caso se refere aos topos de morros. Mudanças nos critérios para a preservação desse tipo de terreno reduziram em 87% a área a ser protegida em morros, montes, montanhas e serras em todo o país (Soares‐Filho et al., 2014). O quarto exemplo de retrocesso imposto pela LPVN é o estreitamento da faixa potencial de vegetação nativa a ser mantida ao longo dos cursos d’água. Antes, a faixa a ser preservada e restaurada nas margens de rios e riachos era definida a partir do nível máximo atingido no período de cheias. Agora, passou a ser medida a partir do dito leito regular de cursos d’água, aferido fora do período de chuvas. Essa alteração ocasiona pouco impacto em rios e riachos encaixados em vales, pela restrição do relevo ao extravasamento do curso d’água. Porém, no caso de rios de planície, poderá reduzir à metade a área de vegetação nativa a ser mantida pelo deslocamento da faixa de proteção para mais próximo da calha do curso d’água, o que poderá deixar a vegetação nativa submersa nos períodos de cheia e desprotegida a faixa que margeia o curso d’água durante o período de cheias (Garcia et al., 2013).
As disposições transitórias da LPVN, por sua vez, afetaram principalmente a exigência de restaurar a vegetação nativa, que diminuiu em 58% em relação à área potencial de ser recuperada nos termos da legislação anterior (Soares‐Filho et al., 2014). Essa redução resulta de exceções incluídas na LPVN para que os proprietários rurais possam regularizar seus passivos ambientais frente à nova lei. Dentre as concessões, destacam‐se: i) o fim da exigência de recuperar a RL em propriedades com menos de quatro módulos fiscais de área (o módulo fiscal representa o tamanho mínimo estipulado para que uma propriedade rural seja economicamente viável, varia de 5 a 110 hectares conforme a região do país, é determinado com base nas principais atividades agrícolas e nos indicadores socioeconômicos de cada município brasileiro), antes obrigatória para todas as propriedades que tivessem déficit de RL, independentemente de seu tamanho; ii) a possibilidade de reduzir a largura das faixas a serem recuperadas ao longo dos cursos d’água que consolidou trechos de APPs que poderão ser mantidos como áreas agrícolas de uso permanente e infraestrutura; iii) a remoção da exigência de recuperar a vegetação nativa em outros tipos de APP, como os topos de morro e as encostas íngremes; e iv) a possibilidade de inclusão das APPs regulares e em recuperação de uma propriedade no cômputo da RL devida, o que permite trocar as áreas que deveriam ser recuperadas ou compensadas para alcançar a porcentagem mínima de RL por áreas de vegetação nativa em APP (isso só era permitido pelo CF de 1965 em casos especiais).
A obrigação de recompor a vegetação nativa em APPs ao longo de cursos d’água, uma das exigências novas da LPVN incluídas nas disposições transitórias, pode em alguns casos gerar um efeito paradoxal. Embora o CF de 1965 não obrigasse a recomposição das APPs, as atividades agrossilvipastoris deveriam ser suspensas nessas áreas, para permitir a recuperação espontânea da vegetação nativa por meio da regeneração natural, onde isso fosse viável. Por não determinar a recuperação de APPs em topos de morro e encostas e estabelecer faixas muito estreitas a serem restauradas ao longo de cursos d’água, com larguras que variam de 5 a 100 metros (fig. 5), a área a ser recuperada deverá diminuir, mesmo com a obrigatoriedade atual de restabelecer trechos estreitos de APPs ao longo de cursos d’água. Essa medida deve trazer ganhos relevantes de vegetação nativa para regiões já excessivamente desmatadas e com uso do solo historicamente mais intensivo, como a Mata Atlântica, onde a regeneração natural tende a ser mais lenta e pouco efetiva. Porém, em ecossistemas nos quais a regeneração natural é mais viável, como na Amazônia, onde a degradação é mais recente e ainda sobraram muitos remanescentes naturais na paisagem, a legalização de atividades agrossilvipastoris em APPs poderá reduzir sensivelmente a área potencial de vegetação ciliar nativa, restrita a corredores estreitos, cuja largura será definida de acordo com o tamanho da propriedade e a largura do rio (fig. 6). Além disso, por serem extremamente estreitas, essas faixas de vegetação são pouco efetivas tanto para a conservação da biodiversidade como para manutenção de serviços ambientais. Diversos estudos mostram que os corredores ciliares precisam ter a largura mínima de 50 metros para que muitas espécies de animais consigam usá‐los (Tubelis et al., 2004; Lees & Peres, 2008; Metzger, 2010; Ramos & Anjos, 2014). Um dos fatores essenciais para viabilizar a recuperação da vegetação nativa ao longo dos cursos d’água é isolar o fator de degradação, como a criação de gado solto ou o cultivo continuado da área.
Como a Lei de Proteção da Vegetação Nativa definiu que a largura da faixa de mata ciliar a ser recuperada varia em função do tamanho da propriedade rural, poderá haver mudanças bruscas de tamanho de vegetação ciliar entre propriedades vizinhas, o que levará a uma descontinuidade das funções ecológicas, como a proteção do solo e da água e seu uso como corredor ecológico pela fauna.
Outro retrocesso significativo da LPVN foi a descaracterização parcial das funções ambientais das APPs e das RLs, que haviam sido bem explicitadas no CF precedente. A LPVN permite regularizar tanto as atividades agrossilvipastoris em trechos ao longo de cursos d’água ou em toda a extensão de topos de morro e encostas íngremes quanto as obras de infraestrutura já feitas nesses locais. Desse modo, a lei ratifica ações ilegais do passado, dadas agora como fatos consumados. Essa possibilidade cria precedentes para que a degradação dessas áreas seja perpetuada e mantida sem vegetação nativa. Por mais que a consolidação de áreas agrícolas em APPs esteja condicionada na lei à adoção de práticas de conservação do solo e dos cursos d’água, a fiscalização dessa condicionante é praticamente inexequível. Nesse contexto, faixas muito estreitas de vegetação nativa adjacentes às áreas de cultivo continuado em APPs tendem a restringir o potencial ambiental dessas áreas.
No caso das RLs, a possibilidade de compensar a eliminação da vegetação nativa ocorrida anteriormente em uma propriedade com a compra ou o arrendamento de terras com vegetação nativa do mesmo bioma remanescente em outra propriedade, localizada em uma microbacia hidrográfica diferente e que pode estar até mesmo em outro estado, prejudica a conservação da biodiversidade e a geração de serviços ambientais em regiões já muito degradadas, como o Sudeste brasileiro. O preço elevado das terras em algumas regiões brasileiras tende a deslocar as áreas de compensação para outras regiões com o objetivo de reduzir custos. Operada dessa forma, a transferência da área de compensação desconsidera os critérios ambientais vinculados à função da RL. Tal economia de custos se dá com o prejuízo da recuperação de bacias hidrográficas importantes para o suprimento de água para a população ou paisagens prioritárias para favorecer o fluxo gênico e o deslocamento de plantas e animais, que trazem impactos diretos à polinização de cultivos agrícolas e ao controle biológico de pragas.
Igualmente problemática é a autorização do cultivo permanente de espécies exóticas lenhosas em até 50% das áreas de RL a serem restauradas. Essa possibilidade desvirtua as funções ambientais essenciais das RLs, principalmente o seu papel de proteção de flora nativa. É importante notar ainda que essa disposição na LPVN não estabelece restrição ao uso de espécies invasoras, que podem prejudicar as espécies nativas e impactar negativamente os serviços ambientais não apenas nas áreas a serem recuperadas, mas também nos remanescentes de vegetação nativa dos arredores, que podem ser colonizados pelas espécies invasoras introduzidas nas áreas de RL.
Além de reduzir as demandas de recuperação e de permitir o uso agrícola continuado de áreas que antes deveriam ser mantidas com vegetação nativa, a LPVN tornou possível aos proprietários que aderirem ao PRA anistiar as multas por descumprimento do CF de 1965 e anular as exigências de recuperarem suas terras do dano ambiental. Essas medidas podem beneficiar cerca de 90% das propriedades rurais brasileiras e punir aquelas que historicamente cumpriram a lei (Soares‐Filho et al., 2014). Essas anistias criam um precedente perigoso por duas razões. Primeiro, por gerar a expectativa de que revisões futuras na lei voltem a beneficiar os proprietários que não a seguirem rigorosamente. Segundo, por permitir ganhos econômicos maiores a autores de crimes ambientais, ao permitir que não respondam legalmente pelos danos que cometeram e possibilitar que continuem a lucrar com o cultivo de áreas ocupadas irregularmente no passado, enquanto que os proprietários que cumpriram a lei anterior não podem se valer desse benefício (fig. 7).
Comparação entre uma propriedade rural que seguiu e outra que não seguiu o Código Florestal de 1965 em relação às possibilidades de uso do solo e necessidade de recuperação da vegetação nativa, de acordo com a Lei de Proteção da Vegetação Nativa de 2012, em Áreas de Preservação Permanente (APP) e Reserva Legal (RL).
Passados quase quatro anos da sanção da LPVN, ainda é grande a incerteza sobre como a nova lei será aplicada. Alguns pontos necessitam de regulamentação e falta criar e efetivar programas de controle e incentivo à plena implantação da LPVN. Além disso, ações jurídicas que contestam a constitucionalidade de determinados itens dessa lei estão em análise no STF. Perante esse quadro, hoje só é possível avaliar parte das consequências reais da LPVN que preocupam diferentes setores da sociedade. Boa parte da comunidade científica e de entidades e movimentos de proteção ambiental teme que a aplicação da nova lei aumente a perda de vegetação nativa e diminua a necessidade de recuperação em regiões já muito degradadas em decorrência dos retrocessos aqui identificados. Os produtores rurais, por sua vez, receiam que o cumprimento da LPVN torne suas propriedades economicamente inviáveis, uma vez que poderão ser obrigados a usar parte de suas terras produtivas para recompor, com recursos financeiros próprios, a vegetação nativa suprimida. A seguir, discutiremos alguns dos impactos potenciais que a LPVN pode trazer para a conservação da biodiversidade, a geração e a manutenção de serviços ambientais e a produção agropecuária.
Conservação da biodiversidadeVários artigos da LPVN proíbem a conversão de novas áreas de vegetação nativa em áreas agrícolas. Mas exceções incluídas na lei e a redação ambivalente de alguns de seus trechos criam contradições que podem, em muitos casos, invalidar esse princípio. As contradições surgem principalmente nos casos em que as disposições transitórias reduziram a proporção ou a extensão da vegetação nativa a ser preservada. Incertezas de conteúdo e da validade dessa nova lei dificultam o seu cumprimento e já ameaçam destruição da vegetação nativa no Brasil pela pressão de expansão da fronteira agrícola, em especial no Cerrado e na Caatinga, que são, respectivamente, os biomas de savana e semiárido mais diversos do planeta (Soares‐Filho et al., 2014). No primeiro ano após a publicação da lei, a supressão de vegetação nativa na Amazônia Legal aumentou quase 30%, e reverteu uma tendência de quase dez anos de queda (PRODES, 2013). Já na Mata Atlântica houve uma elevação média na taxa de supressão de vegetação nativa de 9%, índice que chegou a 150% no Piauí (SOS Mata Atlântica & INPE, 2014). Esses dados mantêm o Brasil no constrangedor posto de país com maior área de supressão de vegetação nativa no mundo (FAO, 2015).
Essa redução de habitats é o principal fator associado à extinção de espécies no país (Ribeiro & Freitas, 2014). Seus efeitos assumem importância global pelo fato de o Brasil ser o país com a maior biodiversidade do mundo (Lewinsohn & Prado, 2005). Mesmo que não se destruam novas áreas de vegetação nativa, muitas espécies de plantas e animais encontrados em ecossistemas bastante alterados e fragmentados, como a Mata Atlântica, poderão ser extintas em decorrência de seu isolamento reprodutivo. Várias delas subsistem precariamente em pequenos fragmentos de vegetação nativa, degradados e isolados uns dos outros por grandes áreas agrícolas e urbanas (fig. 8). Estudos recentes indicam que há um declínio abrupto na integridade ecológica de comunidades de vários grupos animais quando a proporção de vegetação nativa de uma região cai, respectivamente, para menos de 30% na Mata Atlântica ou 43% em florestas da Amazônia (Pardini et al., 2010; Banks‐Leite et al., 2014; Ochoa‐Quintero et al., 2015). Considerando que restam somente de 11% a 16% da vegetação original da Mata Atlântica (Ribeiro et al., 2009) e que extensas regiões de outros biomas brasileiros já estão abaixo dos limiares de cobertura apontados pelos estudos, muitas extinções são iminentes no futuro, é apenas uma questão de tempo.
Exemplo que mostra como a fragmentação da vegetação nativa após conversão para uso agrícola pode levar à extinção de espécies. Antes do desmatamento (1), a fauna pode se deslocar livremente por uma grande área de vegetação nativa, encontrar alimento, abrigo e parceiros para acasalamento. Isso permite que sejam mantidas populações grandes e saudáveis, ou seja, viáveis. Logo após o desmatamento (2), algumas espécies da fauna desaparecem de imediato de trechos muito pequenos e isolamentos de vegetação nativa, mas podem permanecer em áreas um pouco maiores e conectadas ou próximas a outras áreas. Mas com o tempo (3), o isolamento reprodutivo pode causar problemas genéticos e as áreas pequenas podem não oferecer alimento suficiente para manter populações viáveis e fazer com que parte das espécies vá aos poucos sendo extinta.
A aplicação da LPVN poderá agravar esse quadro por permitir a redução de até 58% na área a ser recuperada e possibilitar a compensação da RL longe das regiões com carência crítica de vegetação nativa (Soares‐Filho et al., 2014). Parte dessas extinções poderá ser evitada com a recuperação em ampla escala da vegetação nativa, principalmente nos trechos que permitem maior conexão entre os fragmentos isolados na paisagem (Brancalion et al., 2013). Assim, esses e outros estudos justificam a necessidade de manter APPs e RLs com as dimensões exigidas pelo CF de 1965, ou até mesmo de aumentá‐las em ecossistemas criticamente ameaçados (Metzger, 2010).
Geração e manutenção de serviços ambientaisPerdas adicionais de vegetação nativa podem comprometer ainda mais a manutenção de serviços ambientais, como a purificação de água, a proteção do solo, a polinização de cultivos agrícolas e a regulação climática. Ao mesmo tempo, a redução da proteção da vegetação nativa remanescente e da área a ser restaurada, bem como a alteração da função ambiental das APPs e das RLs, pode expandir e agravar problemas ambientais já observados em diversas regiões brasileiras, como falta d’água, deslizamentos de encostas, inundações e secas.
Essas consequências podem afetar tanto a atividade econômica como a qualidade de vida da população de áreas urbanas e de regiões já excessivamente convertidas em uso agrícola. A água proveniente da Mata Atlântica abastece mais de oito em cada dez pessoas no Brasil, contribui para a geração de 70% do PIB nacional e produz 62% da energia elétrica do país (Joly et al., 2014). Além de pôr em risco a oferta de água, a supressão e a ausência de recuperação da vegetação nativa podem comprometer a sua qualidade. A consolidação de atividades agropecuárias em APPs e o estreitamento das faixas a serem recuperadas nas margens de rios e riachos podem prejudicar a função de filtro desempenhada pela vegetação nativa, que retém solo, agrotóxicos e fertilizantes (Bicalho et al., 2010). A redução de APPs também favorece o aporte de mais sedimentos para os cursos d’água, o que pode danificar as turbinas das hidrelétricas, diminuir a vida útil das represas e reduzir a produção de energia.
A preservação e a recuperação da vegetação ao redor dos mananciais devem beneficiar principalmente a agricultura, atividade que usa até 70% de toda a água consumida no país e pode também tirar proveito de outros serviços ambientais. Estudos mostram que cultivos agrícolas próximos a remanescentes de vegetação nativa são mais produtivos, uma vez que várias espécies de animais, plantas e microrganismos atuam no controle biológico das pragas e doenças causadoras de perdas de produção nos cultivos (Silva et al., 2012). Parte relevante da produção agrícola brasileira depende da ação de polinizadores (fig. 9), os quais são também favorecidos pela proximidade da vegetação nativa. Por essa razão, a diminuição do habitat nativo desses animais pode causar redução nas safras e aumento dos custos de produção agrícola.
Dependência de polinizadores de algumas culturas agrícolas brasileiras e impactos econômicos desse serviço ambiental (Adaptado de Silva et al., 2012; bi=bilhões, mi=milhões).
As APPs e as RLs também prestam um serviço ambiental de impacto regional e até global ao estocar compostos de carbono e evitar a emissão de gases de efeito estufa. Somente as unidades de conservação terrestres do Brasil, que cobrem 17% do território nacional (Ferreira & Valdujo, 2014), já impediram a emissão de 2,8 bilhões de toneladas de carbono para a atmosfera. No mercado internacional de créditos de carbono, esse serviço atinge um valor estimado em 96 bilhões de reais (Medeiros et al., 2011). Essa capacidade de armazenamento de carbono, porém, pode ser reduzida em até 53%, caso haja uma diminuição significativa das áreas de APPs e RLs a serem recuperadas. Na Amazônia e no Cerrado, a redução da vegetação nativa deve favorecer a expansão da fronteira agrícola, mas pode prejudicar o cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil sobre a emissão de gases do efeito estufa (Rajão & Soares‐Filho, 2015). A essa perda, deve‐se somar outra: a redução do ganho econômico e social com produtos que compõem o serviço de provisão de alimentos e que podem ser extraídos de maneira sustentável dos ecossistemas nativos conservados, como frutos, sementes, fibras, fármacos e forragem para o gado.
Outro serviço sob risco evidente é a estabilização geológica de áreas mais vulneráveis a distúrbios, como topos de morro, encostas e vales. Todos os anos, centenas de pessoas morrem e milhares ficam desalojadas no Brasil em decorrência de desastres causados pelo uso ilegal da terra, enquanto governos gastam grandes quantias para mitigar essas perdas (MIN, 2014). Estima‐se que 70% das mortes causadas por enchentes e deslizamentos de terra ocorridos em 2011 na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro tenham acontecido em áreas que, de acordo com o CF de 1965, deveriam ter sido protegidas (fig. 10). Conservar e recuperar a vegetação nativa nessas áreas de risco, muitas delas agora desprotegidas pela LPVN, seria uma estratégia mais eficiente de evitar prejuízos materiais, usar recursos públicos e salvar vidas.
Em 2011, fortes chuvas na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro levaram à morte de centenas de pessoas e ao desalojamento de milhares, principalmente em áreas protegidas pelo Código Florestal de 1965 e hoje parcialmente desprotegidas pela Lei de Proteção da Vegetação Nativa, como topos de morro, encostas íngremes e margens de cursos d’água. Acima, área antes dos deslizamentos de terra, e abaixo a mesma área após as fortes chuvas de 2011, o que evidencia os impactos nas regiões de baixada, onde habitações se localizavam dentro dos limites de Áreas de Preservação Permanente. Imagens obtidas pelo Google Earth 2006/2010 e apresentadas em MMA, 2011.
Análises e estudos detalhados não sustentam as preocupações de que o cumprimento do CF de 1965 ou da LPVN prejudique a atividade agrícola, pastoril e silvicultural no país. O Brasil dispõe de 275 milhões de hectares de terra para essas atividades, dos quais 70% são ocupados pela pecuária extensiva, na maioria das vezes em pastagens formadas por gramíneas exóticas em áreas anteriormente ocupadas por florestas e cerrados. Os 30% restantes estão destinados a cultivos agrícolas e silviculturais (Sparovek et al., 2010). Hoje a produtividade em áreas de pastagens cultivadas é bem inferior à que pode ser alcançada com boas práticas de manejo. O aumento dessa produtividade, sobretudo nas pastagens estabelecidas em áreas florestais, seria suficiente para o país fazer nas próximas três décadas a maior expansão de produção agrícola do mundo, sem ocupar novas áreas de vegetação nativa: o incremento de 50% na produtividade dessas pastagens, o que não depende de grande esforço e investimento, seria suficiente para, sem diminuir a produção pecuária, liberar para a agricultura 80 milhões de hectares hoje ocupados por pastos (Strassburg et al., 2014). Nos últimos anos, o Estado do Mato Grosso obteve aumentos significativos de produção agrícola sem novas supressões de vegetação nativa, o que comprova a viabilidade dessa estratégia (Macedo et al., 2012). A mesma tendência tem sido observada na produção de soja na Amazônia (Nepstad et al., 2014). No Estado do Espírito Santo, a intensificação sustentável da pecuária tem se mostrado o caminho mais viável para ampliar concomitantemente a área de cultivos agrícolas e de floresta nativa para atender metas estabelecidas por políticas públicas de uso do solo (Latawiec et al., 2015).
A recuperação da vegetação nativa em APPs e RLs, seguindo plenamente as determinações da LPVN, se fará à custa de perdas moderadas para o agronegócio. Apenas 600 mil hectares de APPs a serem recuperadas à margem de cursos d’água estão ocupados por culturas agrícolas, o equivalente a cerca de 0,2% da área dedicada à agropecuária no Brasil (Soares‐Filho et al., 2014). No caso das RLs, se a recuperação da vegetação nativa fosse alocada em pastagens cultivadas em áreas de declive, com baixa produtividade e pouco retorno econômico, menos de 550 mil hectares teriam de ser recuperados em terrenos mecanizáveis e que poderiam ser ocupados pela agricultura (Soares‐Filho et al., 2014). Caso essas possibilidades se concretizem, menos de 0,5% da área agrícola efetivamente produtiva do país seria perdido para a restauração de campos, cerrados e florestas. Essa perda não compromete a sustentabilidade econômica de propriedades rurais (Rodrigues et al., 2011) e poderia ser compensada, em grande parte, por aumentos de produtividade semelhantes aos observados nos últimos anos na agropecuária brasileira (Strassburg et al., 2014).
Há que se considerar ainda que a maior extensão das terras que não cumprem a LPVN é destinada à produção de commodities agrícolas, em grandes propriedades mantidas por produtores de maior poder financeiro. Além disso, a maior parte dos alimentos consumidos pela população brasileira é produzida pela agricultura familiar, que é mais prejudicada pela carência de políticas agrícolas adequadas do que pela legislação ambiental (Martinelli et al., 2010). Como agravante, os agricultores familiares são especialmente afetados pela degradação ambiental por terem sido deslocados historicamente para as áreas de menor aptidão agrícola e já degradadas pelo manejo inadequado do solo (Rodrigues et al., 2011). Na falta de assistência técnica adequada, eles são levados a usar áreas protegidas pela legislação ambiental, mesmo aquelas com baixo potencial produtivo, para ampliar a área de cultivo e aumentar seus rendimentos. Esses fatos reforçam a constatação de que as questões agrícolas e as ambientais são interdependentes e devem ser analisadas de forma integrada.
Outro argumento recorrente de produtores rurais contra a LPVN e a legislação que a precedeu é que os custos de recuperação da vegetação nativa seriam elevados a ponto de comprometer a viabilidade econômica das atividades agrossilvipastoris e prejudicar a competitividade internacional do agronegócio brasileiro. Estimativas veiculadas pela mídia dos gastos com restauração necessários para adequar as propriedades rurais às exigências da nova lei alcançam a casa dos bilhões de reais. No entanto, essas estimativas desconsideram que a maioria das áreas a serem recuperadas seguindo a LPVN poderá se valer da regeneração natural, ou seja, da germinação de sementes e da rebrota de tocos e raízes ainda presentes na área, além da dispersão de sementes vindas de remanescentes das redondezas (Brancalion et al., 2015). Nos casos em que for possível optar pela regeneração natural, o plantio de mudas pode ser reduzido ou até dispensado e baixar muito os custos da recuperação.
De modo geral, as estimativas de custos de restauração também não levam em consideração que, quando a área a ser recuperada for de RL, o restabelecimento da vegetação nativa poderá até mesmo gerar lucro ao possibilitar a exploração de madeira, frutos, forragem e outros produtos dos ecossistemas em recuperação (Rodrigues et al., 2009; Brancalion et al., 2012). Nas RLs há ainda a possibilidade de formar consórcios altamente rentáveis de espécies nativas com espécies exóticas. Dessa forma, os custos da recuperação certamente serão muito inferiores aos apresentados pelos oponentes da atual LPVN. No entanto, é importante que esses custos sejam reduzidos por meio do oferecimento de assistência técnica adequada aos produtores rurais, do desenvolvimento de novas tecnologias e da desoneração fiscal da cadeia de ações de restauração.
Ações em cursoDesde janeiro de 2013 o STF analisa três ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) propostas pela Procuradoria Geral da República. As ADIs 4901, 4902 e 4903 argumentam que ferem a Constituição federal os trechos da LPVN que, em condições específicas, permitem anistiar multas por supressão da vegetação nativa feita em desacordo com a legislação anterior, bem como reduzir as áreas de vegetação nativa que devem ser conservadas ou recuperadas. Caso sejam julgadas procedentes, essas ADIs alterarão parte relevante da LPVN. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) já se manifestaram favoráveis ao acolhimento das ADIs (Nader & Palis, 2015), o que reforçou a posição dos cientistas brasileiros contra os retrocessos ambientais favorecidos pela LPVN. Ainda nesse sentido, em 2015, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) considerou inconstitucional o artigo 67da LPVN. Esse artigo permite – indevidamente, no entendimento do TJMG, com o qual concordamos – que o proprietário do imóvel rural de até quatro módulos fiscais não recomponha áreas de RL para suprir déficits de vegetação nativa. Essa decisão do TJMG abre jurisprudência para que outros tribunais de justiça estaduais se pronunciem, sem depender da decisão do STF, sobre as ADIs indicadas. Várias decisões jurisprudenciais adotadas em outros estados vão nesse mesmo sentido.
Está em curso também a regulamentação da LPVN no âmbito estadual. Essa regulamentação consiste na elaboração de leis, decretos e resoluções para fixar regras e esclarecer como a lei federal será aplicada em cada estado. Alguns mecanismos previstos na LPVN, como o uso de espécies exóticas em RLs e a compensação da RL em outros estados, em áreas definidas como prioritárias pelo poder público, precisam ser regulamentados tanto em nível federal como estadual. Nesse processo, os estados podem estabelecer medidas mais rigorosas de proteção ambiental, mas nunca mais permissivas, do que a lei federal. Essa determinação oferece uma oportunidade valiosa para corrigir alguns dos retrocessos ambientais trazidos pela LPVN e para aperfeiçoar a lei ao adaptá‐la às particularidades socioeconômicas e ambientais de cada estado.
No Estado de São Paulo, por exemplo, a Resolução Conjunta SMA/SAA‐1 de 29 de janeiro de 2016, estabelecida pelas Secretarias de Agricultura e de Meio Ambiente, somente autoriza a compensação da RL fora do estado em bacias hidrográficas que abastecem São Paulo. No entanto, essa restrição está sendo fortemente questionada pelo grupo ruralista do Estado, que quer compensar RL em quaisquer estados abrangidos pelos biomas presentes em São Paulo (Cerrado e Mata Atlântica). Isso deixa evidente o desafio que representa sustentar o interesse geral da sociedade, por exemplo, preservar mananciais responsáveis pelo fornecimento de água, quando esse interesse se choca com o de grupos específicos com grande poder econômico e capacidade de articulação política. Dada a redação imprecisa de alguns trechos da LPVN, a sua regulamentação no âmbito estadual abre oportunidade tanto para avanços como para novos retrocessos ambientais, ancorados em interpretações duvidosas da lei federal, como ocorre no trecho relativo à obrigatoriedade de recuperar RL em áreas de Cerrado em São Paulo.
Segue também em andamento a implantação, pelo Ministério do Meio Ambiente, do Plano Nacional para a Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), que tem como objetivo ampliar e fortalecer as políticas públicas, incentivos financeiros, mercados, boas práticas agropecuárias e outras medidas necessárias para a recuperação de 12,5 milhões de hectares de vegetação nativa nos próximos 20 anos. Trata‐se de um plano inovador no contexto ambiental brasileiro, elaborado de forma participativa. Ao contrário do setor agrícola, o setor ambiental nunca contou com programas e políticas de incentivos, sobretudo financeiros. No entanto, o sucesso do Planaveg depende de um arranjo multissetorial no governo, que envolve o Ministério da Agricultura e o da Fazenda, por exemplo, para prover apoio financeiro e político para que as medidas propostas no plano sejam implantadas.
ConclusãoA LPVN trouxe avanços importantes que, finalmente, devem permitir a implantação efetiva de formas de proteção e recuperação da vegetação nativa existente em propriedades rurais particulares no Brasil. Mas a lei também abriu espaço para retrocessos críticos tanto na proteção e recuperação da vegetação nativa como na manutenção dos serviços ambientais por ela prestados. A fim de que se reduzam os possíveis prejuízos ambientais e se cause o menor impacto possível para o produtor rural, recomendamos:
- i)
que o Poder Judiciário atente ao conhecimento científico disponível para tomar suas decisões e que os estados e os municípios corrijam possíveis distorções na LPVN por meio de regulamentações bem elaboradas, embasadas nesse conhecimento e construídas com ampla participação da sociedade civil, dos proprietários rurais e da comunidade científica. Da mesma forma, recomendamos que o Governo Federal prossiga com a consolidação do CAR, cujo prazo de inscrição foi prorrogado para maio de 2016, e, com a implantação do PRA, já atrasada. Tramita em nível federal um projeto de lei para que o prazo de preenchimento do CAR seja novamente prorrogado para 2018, o que desestruturaria mais uma vez a frágil cadeia produtiva da restauração e retardaria ainda mais o início das atividades de recuperação ambiental, tão urgentes para mitigar crises hídricas e desastres naturais em diversas regiões do país;
- ii)
que se fortaleçam os órgãos de assistência técnica rural e, idealmente, que se crie um órgão de assistência técnica ambiental para auxiliar o proprietário rural no cumprimento da lei, principalmente para aqueles que não podem pagar por tal orientação;
- iii)
que se desenvolvam mecanismos de estímulo, como incentivos fiscais para a cadeia produtiva da restauração (produtores de sementes e mudas, elaboradores de projetos, empresas e cooperativas que fazem plantios etc.) e o pagamento por serviços ambientais. Sem esse avanço, que reconhece os méritos de quem trabalha pela conservação e ajuda a cobrir os custos de recuperação e preservação, o alcance da LPVN ficará muito aquém do possível e necessário;
- iv)
que a compensação da RL seja feita o mais próximo possível da área degradada (microbacia ou bacia hidrográfica) e, se feita em outros estados, seja restrita ao mesmo tipo de vegetação no qual se constatou o déficit, tais como tipos específicos de floresta do amplo bioma Amazônia, com prioridade para áreas onde a conservação da biodiversidade e a geração de serviços ambientais têm sido mais ameaçadas pela falta de vegetação nativa. Tais medidas visam a compensar de fato o que foi perdido com a degradação de uma dada região em termos de biodiversidade e serviços ambientais, ao invés de simplesmente estabelecer formas mais simples e baratas de formalizar o cumprimento de demandas legais;
- v)
estabelecimento de valores de referência para aferir se uma área recuperada atingiu os critérios mínimos de qualidade ambiental, o que permitiria ao poder público verificar se o compromisso legal de restauração assumido pelo proprietário foi cumprido. Na ausência desses critérios, a efetividade da LPVN ficará comprometida. O Estado de São Paulo já avançou nesse ponto ao criar uma resolução que define os parâmetros ecológicos de vegetação que demonstram o cumprimento das exigências da lei (Chaves et al., 2015). Iniciativa semelhante necessita ser adotada por outros estados. Operadores de órgãos fiscalizadores precisarão com urgência desses valores de referência e de um sistema integrado para aferir a eficácia dos projetos de restauração, que, muitas vezes, são feitos com aporte de recursos públicos, por exemplo, via instrumentos de Pagamentos por Serviços Ambientais.
Por fim, reconhecemos que o governo brasileiro tem o mérito de estabelecer pela primeira vez um plano nacional para dar apoio à implantação da LPVN. No entanto, ressaltamos que esse plano será inócuo se não for adequadamente incorporado no âmbito das políticas agrícolas, que historicamente têm fomentado a produção agrícola, pecuária e florestal sem a correspondente sustentabilidade ambiental.
Como citar este artigo: Brancalion P.H.S., et al., 2016. A critical analysis of the Native Vegetation Protection Law of Brazil (2012): updates and ongoing initiatives. Nat. Conserv. (Impr.). 14, (Supplement) 1–15.